Parte 1
Dezembro de 1981, uma chuva fina e persistente caía desde a manhã, tornando o dia frio e nublado, mas nem esta situação, afastava o pequeno Zezinho de uma fresta na parede de madeira de nossa loja, aonde estavam guardados as caixas com brinquedo chegados para o Natal. Na pequena Comunidade tudo se sabia, e o "Natal Festa "agora que tinha a participação de todas as pessoas, era realmente um acontecimento Sócio Religioso, da maior importância. O corpinho magro e desnutrido sem a proteção de um agasalho, ou mesmo uma simples camisa,tremia levemente, mas o pequeno menino não se afastava da fresta mágica, de visão tão tentadora. Zezinho era o filho de uma jovem mulher recém chegada em uma das viagens de nosso barco, que trazia mercadorias e pessoas para trabalhar. Ele era fruto de um relacionamento juvenil e inconsequente, que deixou como marca de sua imaturidade, apenas um pequeno ser humano penalizado pelo fato de sua mãe pobre, não ter estrutura social , econômica para criar filho, principalmente por ter sido excluída da família que não tinha como receber mais uma boca para sustentar. Quando Zezinho nasceu,sua mãe tinha apenas doze anos. Agora com sete anos, ele nunca tivera o direito de ser criança, era explorado pela mãe que, sem piedade o encarregava das mais duras tarefas domésticas, com uma insensibilidade e indiferença, que revoltava a quem via tal comportamento. Zezinho cuidava de uma irmã de quatro anos também sem pai, e ainda era responsável pela limpeza da casa, varrer, carregar água para lavar louça,para beber, tarefa que executava com muita dificuldade pois tinha que descer uma enorme ladeira, e retornar subindo com um balde de dez litros cheio . Nos poucos momentos que se entretinha brincando, se era descoberto, era castigado com uma surra de galhos de arbustos, e seu corpo magro, frágil era marcado, tal como sua mente que não conseguia entender porque tanto maltrato. Pelo fato de ter uma alimentação inadequada a sua idade, carente de proteínas, vitaminas,sais minerais, o corpo de Zezinho com sete anos era do tamanho de um menino quer apenas tivesse cinco. Outros meninos de sua idade , um pouco mais velhos, sempre mais robustos e espertos, o maltratavam com pancadas e o pior:xingavam,e mostravam desprezo por sua condição de menino sem pai. Na verdade, o fato de não ter pai nem era tão grave entre aquelas pessoas, o que realmente contava é que Zezinho era fraco e nunca ninguém se interresara por ele. Nossa Comunidade era formada por pessoas vindas dos Rios Tarauacá, e Jurua tanto de seringais quanto das Cidades de Eirunepé e de Envira. Muitas destas famílias em seus lugares nativos, pela sua condição de pobreza, nunca tiveram vida social decente e participativa, nunca comemoravam aniversários, reuniões de Natal, estas coisas tão comuns. Na nossa Vila, incentivamos e prestigiamos a vida Social de todos. Criamos um serviço de divulgação com gaitas de alto falante, no qual, a todo anoitecer tinha um programa para divulgar as notícias da empresa mas também para dar oportunidade a Comunidade de se comunicar, parabenizando os aniversariantes do dia, enviando mensagens e coisas assim que tiveram grande aceitação e participação da população. Aos poucos fomos mudando os conceitos, e sempre incentivando ações de amizade e respeito entre eles. Eles todos estavam vivendo uma nova e surpreendente fase de vida da qual todos estavam conscientes que devia ser cada dia melhor. Esta nova Empresa de minha família, criada para implantar um grande Seringal de Cultivo de Mil Hectares, foi possível graças a um programa chamado Probor 2 de um Órgão Governamental que era direcionado para o setor de heveicultura principalmente para aos moldes da Malásia fazer surgir Seringais produtivos e organizados, por planejamento técnico. Sudhevea, era o nome desta Secretaria que, ao criar o programa, esqueceu de dotá-los da alta tecnologia existente nos pequenos seringais da Malásia. O local escolhido por nós tinha sido a de sede de um dos Seringais Nativos de nome Mourão, em cima de uma chapada de terra firme alta, criamos toda estrutura necessária. Desmatamos, limpamos a terra fizemos Jardim Clonal, Sementeiras, e plantamos 1.200 hectares com tocos de Seringa selecionados. Construimos casas, até um hotel, um Clube de danças para os fins de semana, incentivamos o Esporte e um campeonato de futebol, também Voley, com divisões de Classes A e B, e diversos times, para abrigar tanta demanda. Instituímos a lei seca, pois apesar do lucro fácil que bebidas alcoólicas podiam trazer, o prejuízo Social seria um fato desastroso. E esta vila tinha organização impecável, todos eram incumbidos de responsabilidade, todos se sentiam proprietários, e trabalhavam com interesse. Em nossa juventude, meu irmão e eu tínhamos sido militantes de movimentos esquerdistas, e o nosso "comunismo" [nunca usaríamos este nome...eles não entenderiam.] agora se fazia presente, nesta maneira de cultivar um ambiente fraterno entre as pessoas e de enfatizar o valor da Família.Ssurgia ali o que meu irmão e eu passamos a designar como: Socialismo Caboclo.
Junto a Prefeitura Municipal de Eirunepé, conseguimos a construção de uma Escola em alvenaria, com duas salas de aula, e um outro cômodo que abrigava a professora e o material escolar. Obrigamos as crianças a participarem das aulas e em caso de falta, éramos avisados e questionávamos os pais, mostrando a eles o valor de estudar.Aulas pela manhã e a tarde, cuidava da alfabetização e do Ensino fundamental [primário] as noites meu irmão e eu dávamos aulas para os adultos e eram aulas práticas, bem ilustradas pois meu irmão também desenha e com criatividade, conseguimos despertar o interesse daqueles homens rudes e cansados da jornada de trabalho do dia. Houve um grande aproveitamento nestas aulas, ficamos felizes. Muitos jovens e até meia idade que em Eirunepé e Envira eram alcoólatras, conosco se tornavam seres produtivos , esportistas artistas e sobretudo responsáveis cidadãos. Como exemplo destes fatos,vou citar o caso de um jovem amigo nosso de infância que tinha se deixado dominar pelo vício do álcool. Ótima pessoa, simpático honesto, trabalhador, cantava muito bem, bom esportista com destaque para Voley, conversamos com ele, e demos a ele um emprego de responsabilidade e confiança. Sacudimos seu ego, seu amor próprio, e o resgatamos da bebida.Construiu família, e ficou por quatro anos cada vez em melhor condição social. No nosso regime de lei seca, era terminantemente proibido trazer e vender ou consumir álcool e seus derivados. mantínhamos uma ferrenha vigilância que era prestigiada principalmente pelas donas de casa.O rapaz era o Raimundo Nonato , popularmente conhecido como :Buzuca. Estava forte, era atleta, mas um dia com muito dinheiro no bolso foi a Eirunepé, sem a nossa presença, e, depois de tanto esforço, houve o retorno ao vício e ele, nosso amigo, um irmão por afinidade, morreu afogado bêbado em uma poça de áua na beira do rio .Sentimos profundamente esta perca, mas não desistimos de lutar pelas pessoas, perece que Deus, nos mostrou naquela morte, não uma derrota, mas sim o dever de melhorar a luta que tínhamos travado. Nossa Vila ficou bonita, casinhas padronizadas, nenhum trabalhador pagava aluguel, apenas exigíamos que cuidassem bem. Luz elétrica até onze horas da noite,,era muito bom viver ali, e as vagas de trabalho quando apareciam eram disputadas a tapas. Os fins de semana, eram sempre prestigiados por excursões previamente agendadas, por Escolas, Times de Futebol autoridades de Eirunepé que iam ver , e desfrutar das maravilhas que nosso povo tinha: muito esporte e uma piscina construida em um Igarapé de águas negras e limpas, onde os nadadores submersos pareciam seres de bronze. Era tal a demanda das vagas que nos facilitava o direito de selecionar.
Parte 2
Nossos trabalhadores recebiam em dias seus salários que nunca atrasou. Nunca em nenhum momento nenhum deles foi por nós desrespeitado no seu direito de Cidadão, e eu sou feliz por isso. A mãe de Zezinho, veio como tantas outras em busca de um lugar para trabalhar e morar, sabia que aqui poderia sustentar os filhos. Não tinha especialidade alguma em trabalhos e foi destacada para a limpeza das estradas de plantio, mas não foi aprovada pelo capataz Sr. Mariano um homem rude, porém honesto e trabalhador além de justo.Ele não aprovou o trabalho experimental dela e assim não poderia ficar. Uma coisa porém ela tinha para contar a seu favor: seu pai havia sido um velho amigo e seringueiro de meu pai e ela estava mesmo precisando deste trabalho para sobreviver. Sua historia era triste , mas comum e cada dia mais casos assim se vê. Tinha fugido de casa, com onze anos e se prostituiu, nem sequer veio ao seringal ver sua família quando seu pai morreu. Cedemos a ela um quarto em um dos galpões de hospedagem, falei eu mesmo com Sr. Mariano que se tornara meu amigo, expliquei o porque da aceitação, e a chamei para conversar, recomendei seus filhos pequenos, cheguei a dizer-lhe que só por causa deles ela ainda estava ali. Reiterei minha recomendação com seu comportamento com seus filhos pois as pessoas estavam comentando os mau tratos que ela os dava. Aos poucos ela evoluiu na escala social da comunidade, mas seu descaso com as crianças, continuava. Chamei-a e sem rodeios disse-lhe que na próxima denuncia eu a mandaria embora e ainda faria uma carta de denuncia as autoridades de Eirunepé. Ela chorou e alegou que era uma vizinha que estava lhe perseguindo, que era mais uma injustiça que recebia, mas não mudei de pensamento e avisei que ela estaria sendo vigiada por alguém de minha confiança. Passei sem me dar contas a observar Zezinho, e fui descobrindo uma figurinha complexa, que se perdia entre os desencantos de nada ter e a doçura de seu espírito quando pacientemente cuidava de sua irmãzinha chorona e protegida pela mãe. Era um bom menino. Era acostumado a não ser ninguém, a não ouvir uma palavra de carinho, um gesto amigo, e isto ao passar dos dias ia me ganhando como um aliado pronto para defendê-lo. Procurei-o, tentei conversar, consegui poucos sons fracos e tímidos, e quase não o vi me fitar , seus olhos grandes, castanhos estavam sempre baixos como se fosse proibido olhar em frente.. Era arredio, demonstrava medo a uma simples aproximação. Eu já não conseguia deixar de pensar no drama que aquele pequeno ser carregava sobre os ombros, e decidi que mudaria sua vida, lha daria o direito de ser humano, de sentir e ter reações próprias das crianças. Para conseguir me aproximar, andei organizando umas corridas de velocidade na orla do campo de Futebol após o horário de trabalho. Era a hora sagrada do meu jogo, mas, forcei a barra para Zezinho se enturmar e, no início uns dois meninos filhos dos trabalhadores mais abastados quiseram humilhar o pobrezinho, Deixando ver que eu o estava ajudando, interferi nas ações de ataque dos moleques, falei que agora o Zezinho estava trabalhando para mim, e ainda reforcei o status do menino dizendo aos outros que ele faria a seleção de quem poderia ou não competir. Qualquer outro menino teria ficado se sentindo o dono da bola, mas ele disse-me todo envergonhado que nem sabia brincar direito e que os outros eram melhores que ele.. Continuei nas tardes, e agreguei as disputas pequenos prêmios que fazia questão de dar aos vencedores, sempre conseguindo colocar Zezinho com meninos menores que ele. Finalmente consegui depois de perder uma semana de esporte quebrar o gelo e Zezinho começou a não fugir das minhas conversas com ele. Notei que ele ficou impressionado com o que falei de ele estar trabalhando para mim, e sempre que podia me perguntava quando é que iria começar, então criei algumas tarefas para ele executar, mandava-o levar bananas para minha casa, perto da loja, mandava limpar botas, dar milho para as galinhas e me senti recompensado pois ele se sentia útil, e acho que até importante, pois não aceitava ajuda de ninguém e caprichava no que fazia. Certo dia ao chegar na loja, vi diversos meninos comentando o que ganhariam no Natal; agora conheciam o Papai Noel, acreditavam que ele ajudaria seus pais a comprar os brinquedos. Estavam perguntando quais os brinquedos que viriam, qual o mais bonito. Entre minhas atividades na Empresa estava o de ser Diretor Comercial e quem fazia as compras do Natal era eu. Consegui despertar nas pessoas o prazer de comprar , de consumir um pouco de supérfluo E criei um mini Shopping. Dentro de uma casa grande que nos servia de loja para estivas, fiz divisões, criei boxes, e em cada um coloquei um tipo de artigo que ia desde artigos para crianças, a material esportivo , bolas para Futebol e Voley da marca Mikasa chuteiras importadas da Mizuno, Adidas Tiger, enfim outras lojinhas para mulheres, e a maior para atendimento aos trabalhadores. Foi um sucesso, muitas pessoas de Eirunepé se deslocavam até ao nosso Shopping para adquirir produtos importados que eu trazia da Zona Franca de Manaus.A diversidade de produtos de nossa lojinha, fazia a festa das pessoas que na época não tinham aonde comprar estas "novidades". Os meninos estavam sempre que podiam indo a loja para ver se algo ja estava exposto, e uma pequena reunião deles acontecia, com cada um deles se enaltecendo mais e dizendo que o melhor brinquedo seria seu. Aproximei-me e perguntei ao Zezinho o que ele iria ganhar, ele como sempre tímido nem falava e minha pergunta foi respondida por outros meninos que disseram: esse ai não vai ganhar nada. Ele nem sabe quem é o Papai Noel, e nunca ganhou um presente na vida.. Zezinho cabisbaixo, pegou sua irmãzinha pela mão e saiu. Achei que aquele corpinho magro, agora estava carregando um peso muito maior que o do pesado balde de água que costumava carregar...era o peso da humilhação. Chamei por ele mas não atendeu. Na nossa Sociedade, agora as pessoas valorizavam e participavam ativamente das datas comemorativas. Toda semana as quinta feiras, reuníamos todos na Escola a noite e nesta reunião meu irmão e eu fazíamos uma palestra sobre vida em sociedade, respeito ao próximo e isto nos ajudava muito a gerenciar, pois um mínimo de conflitos existiam e sempre fáceis de solução. Assuntos da empresa, mudanças de áreas de trabalho, mutirões, prestações de serviço executados, acertos dos chefes de equipe, datas comemorativas, esporte , tudo era debatido nesta ocasião. Era o mês de Outubro, e eu estava me programando para ir a Manaus, para fazer nossas compras de Natal. Esta parte de organização não sofria a interferência de meu irmão que sempre era mais ligado ao esporte e as festas dançantes da Discoteca aos fins de semana, quando então ele não contava comigo que apenas aparecia nos bailes para assistir um pouco, e logo sair. as festas varavam as madrugadas e algumas vezes ao amanhecer ainda estavam dançando. Meu irmão importou de Manaus o que melhor tinha em equipamento de som na época, e as festas eram concorridas. Nesta minha ida a Manaus, eu traria também compras pessoais pois era a única ocasião que eu dispunha de tempo para ir a capital, agora também transformada no melhor Centro de.Compras do País, por conta da Zona Franca. Eu mudava de relógio, comprava botas , comprava um novo equipamento de som, aparelhos de Rádio gravadores, muitos discos, fitas K7, e novidades que eu via, além de umas facas de boa qualidade importadas, que eu sempre usava em minhas incursões na selva. Os brinquedos e minhas compras pessoais, eu despachava no avião pois o peso não era tanto, as outras coisas, eu despachava por algum barco que estivesse saindo para Eirunepé , apesar da demora de vinte ou mais dias, tinha tempo suficiente de chegar bem antes do Natal. Os volumes que vinham despachados na Companhia aérea, eram bem recomendados com etiquetas de Frágil para não chegarem quebrados. Depois de um acerto com meu Pai, passei a acumular também o gerenciamento dos Serigais do alto rio Eiru que antes eu dividia com meu irmão. O trabalho aumentou muito, e meu tempo agora era resumido e estafante pois meu irmão não administrava a Comunidade, com rigor, e sempre que eu voltava das viagens que tinha que fazer a cada quinze dias para atender os seringueiros, no meu retorno, sempre apareciam questões de brigas e outras coisinhas que de qualquer forma quebravam a harmonia de nossa Comunidade. Neste ano, eu estava indo a Manaus bem depois do que sempre eu fazia, por causa do novo trabalho nos Seringais. Eu conhecia todos os seringueiros, e ajudava meu irmão a gerenciar desde 1964, mas meu método de trabalho era outro, eu sempre fui muito exigente tanto com quem trabalhava comigo quanto com meu desempenho. Assim um seringal que produzia nove toneladas, consegui em três anos elevar para mais de vinte a produção anual. Posso assegurar que não foi brincando que o consegui. Estabeleci premios para cada viagem ao melhor produtor, comecei a prestigiar os que produziam [ sempre existiram os que não gostavam de trabalhar] e cobrar empenho dos que eram descuidados com sua família. Promovi uma tabela de produção a ser alcançada com a adesão e responsabilidade de cada um.Foi um sucesso. Meu pai ficou feliz e isto foi meu melhor pagamento. Nas compras que fazia em Manaus, eu abastecia também minhas lojinhas do nosso centro comercial, e me surpreendia com as novidades que encontrava a cada ano. O certo é que sempre ficávamos com um estoque bem sortido e cheio de atraentes artigos surpresa.A vila ja tinha organização urbana, e algumas ruas, nestas festas de muito concorrência eram estimuladas a serem ornamentadas pelos seus moradores e uma premiação era dada a melhor delas. Quando eu chegava de Manaus começavam os preparativos para o Natal, e desde então o clima da Comunidade era voltado para este evento. De Eirunepé, sempre vinham Freiras que passavam dias exercendo uma catequese com reuniões e umas Novenas, as noites. Nossa Comunidade tinha creio que, 90% de Católicos, e eu não interferia nestes eventos, apenas cuidava de discretamente dar apoio e segurança. Ao chegar em Eirunepé, eu tive que esperar por mais uma semana que era o tempo que necessitava para chegarem as caixas com compras que eu tinha despachado. O avião não tinha como trazer tudo de uma vez. Aproveitava estes dias para estar com meus pais sempre perto, minha Mãe sempre reclamava de minhas ausências prolongadas e então eu cuidava de colocar em dias a saudade acumulada. Quando minhas compras chegaram, eu que ja estava com um barco a disposição, partia para minha casa não sem antes recomendar a meu Pai , que as compras que eu fizera para a loja do Mourão, ele não devia deixar meu outro irmâo [que residia em Eirunepé] as abrir e de lá retirar nada. Em Eirunepé tínhamos a maior loja da Cidade e não tinha porque fazer isto, embora ele sempre o fizesse. Minha chegada ao Mourão era aguardada com ansiedade, e toda a Comunidade sabia do cuidado que eu tinha de sempre descobrir coisas novas atraentes e trazer para o Seringal . Era tanta a satisfação dos nossos trabalhadores que quando estavam na Cidade, se permitiam ao luxo de esnobar seus amigos falando sobre o nível de artigos de nossa a loja. Era gratificante ver o que tinha conseguido com estas pessoas. Ao chegar era um dia de Sábado, lembro bem que toda a população estava no porto para me receber, e com certeza o motivo maior era perguntar quando começaria a organização do Natal.
PARTE 3
Muitas pessoas me acompanharam até minha casa que ficava em uma das duas terras altas que dividiam a entrada do Mourão. Sabendo que eu chegaria, uma das moças que trabalhavam comigo tinha providenciado uma panela cheia de suco bem geladinho, e distribuiu com asa pessoas que estavam lá. Sentado na calçada de minha casa e rodeado dos amigos a conversa rumou para os preparativos do Natal, e eu prometi que segunda feira faríamos nossa reunião de planejamento, para escolher pessoas que trabalhariam na organização, e começaríamos a limpeza e a pintura das casas, e prédios da escola loja Discoteque , postes de luz, etc. Era grande o número de pessoas que queriam trabalhar na organização e nem queriam ser remunerados, apenas queriam estar juntos talvez pelo clima de festa.Eu tinha que ir aos seringais do alto, e programar também a vinda das pessoas de lá. saber quantas viriam, e determinar a data . O tempo parece que correu, logo Outubro se foi, e Novembro estava curto para tantas atividades, era tempo de recolher as "Pelas " de borracha que estavam sendo retiradas dos igarapés. Formei três equipes de gente da minha confiança e os encarreguei desta tarefa. As borrachas ficariam em um depósito no Barracão do Santa Maria, no alto rio, onde eu também tinha uma casa, um armazém e uma loja. Quase eu não tinha mais contato com o pequeno Zezinho. As compras deste ano tinha sido melhores que dos outros anos, a medida que o tempo passava, mais novidades chegavam Manaus. Os brinquedos estavam cada vez mais sofisticados e bonitos, e passando por uma das grandes Importadoras, eu vi na vitrine, um avião, modelo Boing, medindo 65 cm.e movido a seis pilhas, tinha uma tecnologia bem avançada e era realmente um super brinquedo, comprei-o. Eu tinha um imenso prazer em poder colocar no nosso seringal coisa que Eirunepé não tinha, nossa loja ou nosso centro comercial era abastecido com o que havia de melhor em Manaus. Para o esporte eu vendia bolas da Mikasa, para Voley e Futebol, chuteiras da Adidas, Mizuno, Tiger, camisas e agasalhos da Nyke, enfim era uma loja de sonhos para o local. Pessoas de Eirunepé sempre que podiam nos visitavam e faziam compras nas lojinhas. Os outros brinquedos também eram movidos a pilha, Tanques de Guerra, Carros, Tratores , pistolas espaciais cheias de luzes e barulhos, bonecas que falavam, estojos de maquiagem, perfumes e relógios bons, e tudo produzido no Japão. Meu pai via com simpatia e entusiasmo minha dedicação e me apoiava em tudo.Nossas reuniões semanais eram palestras desferidas por meu irmão, muito culto e por mim auto didata, mas sábio no trato com eles. Enquanto meu irmão morando no seringal também,não saia da vila senão em trabalho no barco, eu andei em todos os lagos, conheci a maioria das estradas de seringa, acompanhei seringueiros a sangrar, e colher o Latex, caçei com ìndios, morei em uma maloca[aldeia], aprendi seu idioma , eu tinha uma maneira interativa de administrar. Estava perto o Natal, as ruas estavam limpas, as casas pintadas as frentes, toda a pintura estava concluída, e posso dizer que se respirava o ar do Natal. Parentes de nossos trabalhadores estavam vindo para os dias de Festa, o clima de natal estava em todos , nas casas no trabalho, na amizade, no companheirismo, era mesmo um Socialismo Caboclo para nosso orgulho.Chegou a semana da festa. Nossos capatazes estavam organizando os atendimentos para as pessoas comprarem com antecedência seus presentes. As compras ficavam na loja onde embalávamos e colocávamos os nomes dos donos, Uma equipe de seis moças foi contratada para organizar tudo conosco, a cada ano, era necessário mobilizar todos os funcionários nesta organização. Os meninos haviam feito uma brecha na parede de madeira, para curiar os brinquedos que estavam nas prateleiras, e sempre os via conversando discutindo quem seria o dono do avião, mas nunca vi Zezinho até que, já faltando dois dias uma tarde com chuva, enquanto as moças arrumavam as butiques, vi Zezinho colado na parede, todo molhado, tremia de frio mas não abandonava a fresta mágica, era uma oportunidade de também dar uma olhadinha. Pedi a uma das moças que fosse em uma das casas próximas fazer um copo de Chocolate bem forte, e enquanto isso pedi ao Nonato que trouxesse o Zezinho ao Escritório. Quando Nonato pegou em seu braço quase ele morre de medo, estava tão absorto na espiada que nem o vira chegar. Foi uma luta trazer o menino, mas o tranquilizamos e quando o Chocolate quente chegou, o convencemos a toma-lo, mas tivemos que sair de perto, e fingir que não estávamos ali. Não estavamos deixando pessoas entrarem nas lojas antes os dias de venda, somente atendíamos na loja que vendia artigos de casa, mantimentos etc, mas resolvi levar Zezinho para ver os brinquedos,algumas pessoas que estavam na loja estranharam aquele comportamento, pois ele era um menino pobre, sua mãe chegara a pouco tempo, não tinha dinheiro para comprar senão o necessário, mas, deixaram pra lá até ´porque nada podiam fazer. Duas das moças e eu, entramos na lojinha com Zezinho. Ele parecia estar encolhendo de tanta timidez. Olhou os brinquedos como se visse um ET, Nem acreditava que estava ali tão perto deles...se tivesse coragem contaria aos meninos. Viu o já famoso Avião, e seus grandes olhos, despertaram, sua pequena boca ficou entre aberta, e ele parecia em transe. Deixei-o a vontade. as moças falavam com ele , sobre os outros brinquedos mas, imóvel ele tinha os olhos somente para aquele avião. Saímos e pedi que uma das moças trouxesse uma camisinha de malha de algodão e desse a ele em troca da que usava, toda rasgada e molhada, pedi que fosse deixa-lo em casa para evitar uma surra que por certo levaria. AS moças usavam gorros vermelhos com as bordas de algodão,nosso serviço de "rádio", estava gora direto com músicas Natalinas e Nordestinas bem animadas, também de hora em hora um dos rapazes era incumbido de soltar rojões e isto tudo misturado ao grande número de pessoas nas ruas, até parecia uma cidade de verdade. Nonato de hora em hora ia transmitir algum comunicado nosso, e aproveitava para parabenizar as pessoas neste momento de paz e amor, falava de Cristo, se sua importância para o mundo, e agradecia em nosso nome a felicidade que andava junto as pessoas. Estávamos cansados todos nós. nosso dia de trabalho estava começando as sete da manhã e com uma pequena pausa para o almoço ia as seis da tarde e outra pausa para o jantar nos separava de uma nova etapa que durava até a meia noite.Mas todos eram felizes, ninguém reclamava. Eu tinha um rapaz meu amigo de infância que se tornou cozinheiro de embarcações no Jurua, e agora eu o trouxe para trabalhar para mim, ele providenciava a comida de minha equipe de Natal.
PARTE 4
Finalmente havia chegado o dia do Natal.. Bem cedo Nonato havia mandado funcionar nosso grupo gerador e o som estava no ar com uma programação de músicas bem eclética. Isto impulsionou o animo de todas as pessoas que estavam vivendo este evento neste dia feriado, as pessoas estavam em total confraternização, com amigos ou desconhecidos. A cidadezinha fervilhava de pessoas andando, brincando, correndo cantando e prontos para participar de um longo programa de brincadeiras que Nonato estava anunciando. Desde as seis horas as moças bem como todos os funcionários estavam na minha casa e tomariam um café reforçado para o dia que começava. Sete horas, chegamos na loja e lá, designamos atividades para cada um executar.. Colocar em frente as casas, um jogo de luzes também, e nos postes da rua principal. Carregar as cadeiras da Escola para o salão de danças, Colocar tambem três mesas que emendadas, daria para acomodar a nossa equipe de organização, ornamentar o salão com aquelas tranças de papel laminado brilhante, e muitos jogos de luzes, e vários rostos de Papai Noel em plástico de vários tamanhos, conduzir os presentes e arruma-los ao pé da árvore de Natal que ja estava decorada com muitas bolas coloridas e luzes, eram muitas coisas que ainda faltavam ser feitas,mas eu sabia que as meninas dariam conta de seus afazeres e para ter mais certeza coloquei cinco rapazes para ajuda-las. Fiquei na loja, no Escritório. Havíamos convencionado que neste dia não atenderíamos nada de atividades comerciais, mas vez por outra chegava alguém que m funcionário educadamente ´expicava ser impossivel o atendimento, logo pessoas do povo mesmo diziam, :teve tanto tempo. Hoje não é justo e assim tudo se resolvia.As nove horas da manhã começaram as disputas de brincadeiras, corridas de velocidade, dentro de um saco, carregando um ovo sem derruba-lo, o ovo dentro de uma colher, muitas outras brincadeiras que culminavam com um concurso de tiro ao alvo com Flechas, e a participação dos Índios . Na quadra de Volei, em um palco de dois metros por três, perto do som, Nonato também organizou concurso de dança e canto. Todas as modalidades premiariam seus vencedores, o que aconteceria a noite na reunião. A meninada parecia estar no céu. estavam sempre perto de mim e perguntavam a toda hora se tinha em que pudessem ajudar, Mandei-os para as brincadeiras com Nonato, mas muitos ficaram me esperando e então, fui ao Campo de futebol onde uma multidão assistia tudo.Alguns garotos, garotas tinham até torcida organizada, era mesmo uma festa espetacular, e meu coração estava feliz, eu me sentia realizado. Ao caminhar pela rua, fui abraçado por pessoas que há dias ou meses eu não via. Encontrei muitos de Eirunepé que me parabenizaram pela magnifica festa, e, nestas horas os meninos que não saiam de perto, para "ganhar pontos" me abraçavam . Tudo estava correndo como o programado. Paramos para o almoço ao meio dia, e em uma hora já estávamos de volta. Brincadeiras, concursos, tudo terminou as três da tarde e o som continuava agora com o apoio de rapazes que soltavam rojões para animar mais ainda a comunidade. Nas casas dos residentes, não tinha mais como acomodar ninguém, todas estavam com excesso de pessoas. Eram parentes, amigos que vieram para a festa. A empresa tinha dois barcos constantemente comprando peixe no rio Jurua, ambos tinham chegado com um bom estoque, e estavam agora servindo de hospedagem para muita gente. Mandei matar em uma fazenda de gado que tinha no alto rio, dois bois grandes, e distribuímos para cada família um pouco, para ajudar na comida do Natal. As seis da tarde o serviço de som saiu do ar, convocando as pessoas a irem em suas casas jantar e depois as oito horas seria aberta a porta do Salão de danças. Preciso fazer uma observação, pois pessoas que não conhecem a nossa realidade, podem pesnsar que estou super valorizando o trato com as pessoas, em um momento tão belo, mas comum no planeta, e não é bem assim...estas pessoas aqui citadas viviam em condição de pobreza em um lugar que é difícil viver até para quem é rico. Estou me referindo a tipo de vida com possibilidades de uso de bons serviços do Governo, coisas assim, e esta condição humana deles que conseguimos superar, fazê-los olhar de modo diferente seu futuro, passar a ter aspirações, isto é que valorizou o trabalho de minha família, e posso assegurar; ninguém neste mundo teve um Natal, tão preso ao seu simbolismo quanto aqueles rudes caboclos que de repente se sentiram importantes, sentiram que ali era diferente de suas Cidades onde o Prefeito no Natal, fazia uma comemoração bem simples com o dinheiro que vinha para isto, acontecia sempre ao anoitecer, e logo eles os ricos, as autoridades se recolhiam as suas belas casas, recebiam seus convidados, partilhavam uma bela ceia, brindavam ao Menino humilde, mas nem lembravam daqueles que tinham ficado de fora de suas festas. hegavamAqui, cada um trouxe como os Reis Magos , sua oferenda... de paz, de amizade de construção, de estar com a família, não somente a sua ,mas a da COMUNIDADE, e sentiu Amor, e viu no nascimento daquele Ser Divino, o nascimento de sua cidadania, ele reconheceu que o Mourão era o próprio Natal, e foi FELIZ. As asete horas a frente do salão de dança estava repleto de pessoas. Ninguém faltou nem queria perder esta bela festa. As oito em ponto, nossas ajudantes com um vestido vermelho, um gorro da borda de algodão e um belo sorriso nos lábios abriram a porta larga e começaram a levar as famílias aos seus assentos. meus funcionários tinham trazido suas famílias mas estavam ajudando e sentariam na mesa aos fundos do Salão. Adultos e as crianças que chegavam, prendiam sua atenção na grande árvore rodeada de presentes. Eram tantos e tão vistosos, coloridos que quase apagavam o brilho das bolas e dos jogos de luzes que a ornamentavam.. A mãe de Zezinho, ficou bem nos fundos quase invisível, e o menino então desaparecera na multidão. Nonato, dono de fala fácil, fez a abertura da reunião franqueou a palavra aos presentes e, logo me passou o microfone. Começei agradecendo, a colaboração de meus empregados e afirmando que eles eram tanto quanto eu, os responsáveis por tudo que estamos vivendo, E estendi este posicionamento aos chefes de turma, aos anciãos que serviam de Garis, as crianças que faziam a alegria e a Esperança nos dias que viriam, nos amigos que nos prestigiavam com suas visitas, e dediquei a minha participação a meus .Pais, meus Heróis e meu exemplo de vida. Distribuí prêmios aos meus empregados, as moças que trabalharam e depois então eu disse que ali, naquela noite Especial, eu havia conversado com o Menino Deus, no meu coração, e queria fazer um reparo a uma vida de sofrimentos e injustiças agora que estávamos partilhando este Espírito Natalino, Tratava-se de um pequeno menino, humilde, fraco, e pobre como tambèm nasceu JESUS. Como o Divino Salvador, aquele pequeno ser , também carregava uma Cruz. A Crua do sofrimento de não ter ninguém por ele a Cruz que ele sentia a cada dia com uma nova humilhação, a Cruz dos maus-tratos que sofria da vida. Mas meu coração se sensibilizou, e agora ali, na o presença de todos e principalmente de DEUS, eu queria fazer um presente de Natal. Acredito que nesta hora DEUS esteja sorrindo. Olhei agora mesmo para a porta, e ao ver a fina chuva que cai, vi refletida nas poças d'agua as cores das luzinhas e os pingos que caem parecem que são estrelas que estão descendo do Céu para enfeitar ainda mais este momento. Peguei a cx do Avião, desembrulhei-a com o auxilio das moças, liguei sua chave de funcionamento, e no silencio que as proprias crianças faziam se ouviu aquele barulho de um jato Acho que Deus estava ali tambem segurando-o, Suas luzes brilharam como nunca e senti nas pessoas a emoção do que estava acontecendo. Com o avião nas mãos segui para o meio do salão e Aluísio dizendo que queria que Zezinho visse o brinquedo, o trouxe para onde eu estava, e então abaixei-me e olhando nos olhos atônitos dele falei bem alto: Zezinho, este avião é seu! O pobre menino tremia, seus olhos grandes castanhos brilhavam, uma lágrima dançava de um lado a outro mostrando sua emoção. Foi a primeira vez que Zezinho chorou sem ser de dor. Nos olhos daquele menino que parecia não acreditar no estava acontecendo,eu VI A GRATIDÃO SE MATERIALIZAR. AS pessoas agora, muitas delas,emocionadas , aplaudiam o pobre. menino. Aquela noite foi mágica, Dava para sentir no ar o sentimento de solidariedade . Ali não havia lugar para a inveja, nem rancor nem ódio. Queria viver esta experiência para sempre . Queria poder acreditar que aquele momento não era apenas fruto de um milagre de Natal. Creiam foi tão emocionante ver as pessoas se amarem, se unirem para festejar o bem alheio, sei que DEUS estava ali , mais presente que nunca...era ELE eu sei.Me senti Peter Pan, embarquei no avião ao lado de Zezinho e voamos pelo Céu da Esperança, atravessamos vales, montanhas, todas de sonhos e pousamos bem no meio deste sentimento chamado Amor.
Este foi meu Natal Especial, foi realmente meu melhor presente, e nem tentei conter as lágrimas que teimavam em descer de meus olhos.
Mourão Dezembro de 1981
Ecy Monte Conrado